terça-feira, 16 de julho de 2024

Carta aberta ao meu progenitor

 Opa Marcelino, tudo bem?


Então, vou tentar ser sucinto e evitar desperdiçar seu tempo, que desde que nos conhecemos sempre foi muito valioso. De cara já digo que você só precisa ler este primeiro parágrafo, o resto sou eu destilando esse veneno podre que me consome provavelmente desde que me entendo por criança sem pai. Eu te perdôo por absolutamente tudo. Você foi um pai ausente, tivemos nossos momentos, mas infelizmente passou. Sou um homem de 35 anos, não sei quantos anos você deve estar agora, mas de toda forma, obrigado por tudo que vivemos, agora podemos seguir nossos caminhos separados, como sempre deveria ter sido. Não vou te cobrar qualquer tipo de responsabilidade, retroativa ou atual, só quero distância. Eu te perdôo, mas este é o limite do meu bom senso. Não preciso ficar com o resto da sua presença na minha vida. 


A última vez que nos falamos cara a cara, fazem o quê? uns 8 anos? talvez mais. Brasília ainda. Voltando do seu trabalho para sua casa, conversando sobre como minha mãe e as mulheres da família Braga eram terríveis. O clima estava agradável e descontraído, acho que você se sentiu confortável comigo pela primeira vez na vida, e resolveu me contar que eu não fui planejado, mas ainda mais, que você queria que minha mãe tivesse abortado. Eu te ouvindo, incrédulo, e você me contando ali, em uma seriedade digna de político, o quanto meu nascimento foi um evento não agradável para sua vida. 


Compreensível, afinal, você fez a escolha sensível de apenas ir embora, "a trabalho", traiu minha mãe, arrumou outras mulheres, se separou, e achou justo me ver "quando desse." Olha, eu não vou te cobrar nada aqui. Como eu disse antes, eu estou colocando pra fora esse câncer que me consome a vários anos. Eu não te culpo, você fez as decisões que você achou melhores, ou até plausíveis para o seu contexto, o dano que eu levei foi de tabela, mas infelizmente ele existe. 


Logo depois dessa conversa, que infelizmente lembro muito mais do que eu gostaria, e até chorava bastante de lembrar, eu fiquei pensando no quanto eu estraguei a sua vida, e a vida da minha mãe. Mãe essa que pegou essa responsabilidade de me criar sozinha, e fez o melhor que ela pode, e novamente infelizmente, cresci esta merda, mas ela não tem toda culpa. Como eu, uma criança, poderia ter me portado melhor, ter feito ainda mais pra não dar trabalho, não gastar, ser uma criança de pouquíssimos gastos? Ouso dizer que eu fui muito bom nisso. Conti minhas vontades, aceitei que não teria o que os outros tinham, engoli muito choro, muita fofoca, muito dedo na cara. Responsabilidades que não cabiam a uma criança, mas que com um tapa na cara e a voz elevada eram jogadas pra mim, e eu sofreria todas as consequências por não arcar com elas.


Infelizmente eu me peguei imaginando um futuro com um pai presente, como meus amigos e família. As coisas que eles aprenderam, as coisas que eles não foram obrigados a aprender, as vezes em que não tive ninguém para poder fazer uma pergunta. As vezes que eu não sentia que poderia ter um adulto pra me explicar, pra me dar um abraço, pra me fazer entender sem apanhar. Isso me foi podado, muito cedo. Hoje eu vejo o quanto isso me deixou amargo. Acho que essa é a primeira vez que transpareço isso com palavras, e já passou muito da hora. 


Eu tenho vergonha de ter dito a minha mãe, que queria ficar com você, quando eu tinha 7 anos. Afinal você era o pai legal que só aparecia nas minhas férias, me levava pra passear, me dava uns chocolates, e ia embora me deixando com o buraco enorme da responsabilidade, Como eu poderia saber que isso era algo ruim? Como eu poderia imaginar que você já tinha me abandonado ali, já tinha outras vidas, outras crianças, e você deliberadamente escolheu me deixar de lado. Fazendo o mínimo pra que minha mãe não te cobrasse uma pensão, e este é outro ponto em que você venceu. Eu fico abismado, agora adulto, vendo e analisando nossas mínimas interações. O quão rasas eram nossas conversas. O quão nada você participou da minha vida. Ouso dizer que você não esteve presente em nenhum dos meus momentos como homem. Aprendi a fazer a barba sozinho. Aprendi a conversar com as meninas sozinho. Aprendi a dirigir sozinho. Aprendi a trabalhar sozinho. São tantos aprendizados, que ouvia pasmo os relatos dos meus amigos, e ficava completamente inconsolável de imaginar, como deve ter sido não fazer essas coisas sozinho. Como deve ter sido ter alguém pra ensinar o mínimo, mostrar um caminho das pedras, amaciar os erros. Alguém pra apoiar nos erros. Alguém pra abraçar nas tristezas. 


Em uma das suas raras visitas aqui em Belo Horizonte, lembro de ir na casa dos seus amigos, e alguém, que particularmente acho que você gostaria que fosse mais seu filho do que eu, te perguntou algo como "e a mulherada em marcelino?" E você teve a brilhante idéia, achou mesmo que seria de bom tom, dizer que estava uma maravilha, e com certeza muito melhor que a minha, já que eu era "feio igual a minha mãe". Uma das minhas únicas certezas no mundo, é que você nunca, nunca vai saber o real efeito das suas palavras em mim. Eu já esqueci violências contra minha pessoa, inenarráveis, mas o seu sorriso quando você desdernhava de mim está marcado pra sempre na minha memória. 


A única memória afetiva que tenho sua, é uma vez que fomos ao cinema, e você arrotou alto. Eu lembro de rir bastante. Marcelino, a sabedoria que você deixou pra mim, é como não agir. Como não se portar com uma criança. Que eu não deveria ter um filho. Te digo com toda certeza, o maior medo da minha vida, é ser um pai como você. Morrer é fichinha perto da dor de imaginar meu filho com esse tamanho de dor no peito que eu ainda carrego. Por todo esse tempo eu não tive coragem de falar nada com você, porquê eu sabia que eu não teria absolutamente nada de bom pra falar. Eu não quero nada seu, nem hoje, nem amanhã, nem no passado. Não sei o porque você quer voltar pra minha vida, agora que você é um pastor, se está corrigindo seus erros, olha, considere corrigido. Como eu disse ali em cima, eu realmente te perdoo por tudo. Mas não entre na minha vida denovo, por favor. Agora que eu já aprendi a a viver sem você, não tenho apreço nenhum por sua presença. É tarde, mas eu estou te dando esse presente, eu me abortei da sua vida. Me esqueçe. Me deserda. Um filho que está morto pra você. Infelizmente levarei seu nome comigo, porque também só consigo ver o quanto minha mãe te amava ao colocar meu nome de Marcelo. Mas você venceu. Seu filho se virou com o mínimo e não precisa de mais nada seu. Se você quiser que eu assino alguma coisa, assino demais. Não quero sua herança, não quero seu nome, quero que você fique longe. Viva sua vida finalmente sem culpa, sem cargas. 


Eu só tenho o passado pra contar aqui e amargar, e sinceramente, não me importa se você mudou, o que raio quer que tenha acontecido com você nesses anos que ficamos ausentes um da vida do outro. Por favor, me respeite apenas uma única vez na minha vida, e me deixe ir. Eu estou cortando o que restava, é só você lembrar que você já me abandonou bem quando eu nasci. 


Tenha uma excelente vida, e agora ainda mais espetacular sem o Marcelo. 


Adeus, Marcelino.