sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Buraco

-English version below-

Está atrasado, mas não tem problema, sei que meu público cativo é bem paciente e nem liga se eu não cumpro minhas promessas literárias. Eu já contei isso aqui no "bad place", mas além de atualizar pro bsky e pro blog, vou contar também o que aconteceu no dia 31 de outubro de 2024.

Eu como sempre estava trabalhando demais, planejando de menos, e nem entendendo a vida ao meu redor. Precisava ir pra Caeté, e porquê não ir depois do vôlei, numa quarta feira? 23 horas e alguns minutos. Mala pronta, equipamento pronto, só ir. 100% piloto automático.

O volume do som bastante alto, músicas com letras bem cantantes, energia lá em cima, meia noite. Dia 31 de outubro. Chegando na estrada de sabará. E só ali caiu a ficha. Só ali eu percebi a noite. Só ali eu lembrei do porquê eu não gosto de viajar a noite nesta estrada. Só ali.

No intervalo das músicas, o silêncio ensurdecedor da estrada, o pneu no asfalto, os buracos, minha voz fraca cantarolando qualquer coisa, e tudo o que mais eu conseguia ver na beira da estrada, no banco de trás, no retrovisor, nas sombras e na luz, as vozes, os arrepios, os vultos, os toques;

Antes de prosseguir, preciso contar o que aconteceu a dois anos atrás, quando eu também "esqueci" do porquê eu não viajo a noite; muitos de vocês não sabem, mas à alguns anos, na estrada entre Sabará e Belo Horizonte, minha barra de direção quebrou e meu carro caiu de um barranco. 40 metros rolando.

Estava sozinho no carro, que deu perda total; o teto do lado do passageiro chegou a afundar no banco, só o lado do motorista tinha algum espaço. Alguns de vocês sabem que deste acidente eu levei apenas 3 pontos na cabeça e escoriações leves. Nem atestado o médico desquerido quis me dar.

Eu fui socorrido muito rápido pq um transeunte de um coração gigante viu meu carro caindo, prontamente desceu do carro dele e foi me socorrer. Nenhum de vocês sabia que depois do acidente, eu estava com fobia de dirigir. Entrar em um carro me dava ansiedade. O movimento do carro me dava pânico.

Por alguns dias eu achei que não conseguiria pegar num volante denovo, me dava vertigem e uma reação intensa de medo, até como passageiro.

No terceiro dia depois do acidente, eu tive a oportunidade de dirigir, e eu até hoje não sei o que me convenceu, se foi minha vontade, minha ignorância, mas eu tinha uma certeza: se eu não dirigisse aquele dia, eu não entraria em um carro nunca mais, para nada.

Por conta desse tratamento de choque, voltei a dirigir como se nada tivesse acontecido. Nas vezes seguintes que fui pra Caeté, como passageiro, eu reparei em uma sensação completamente alienígena até então: eu estava sentindo, fisicamente, o local do acidente.

Agora as coisas ficam um pouco estranhas, mas tente entender meu lado: quando eu passei a primeira vez no local do acidente, eu me senti sendo puxado pro buraco. Nada drástico, nada forte; um sopro; uma teia de seda que afetava meu coração, em direção ao buraco.

Quando, outras vezes, dormindo no carro ou apenas de olhos fechados, eu conseguia saber exatamente onde eu tinha caído, comecei uma jornada para montar justificativas completamente racionais, factuais e plausíveis pra isso acontecer: Ansiedade, medo, trauma. Meu corpo ficou um bagaço pós acidente.

Mas, meses depois, lá estava eu, dirigindo, sozinho, me aproximando do local. A sensação de puxar veio mais forte do que nunca, e com o coração saindo pela boca, eu ouvi, por cima da música no volume máximo, por cima das minhas lágrimas, eu OUVI: "você devia ter ficado aqui."

Senti a minha mão com medo de tocar o volante, o receio do meu pé em acelerar, a rapidez do meu cérebro para interpretar que aquilo era nada, não existia voz do abismo, era meu trauma encarnado, dor do acidente, loucura. E com isso, segui. Desde então, era isso, trancado na gaveta.

A negação tomou conta. Não foi nada, não era nada, nunca foi nada. É medo. É ansiedade. É psicológico. Trauma.

Claro que depois disso, perdi o costume de viajar pra Caeté de noite, também devido a outros fatores. Das vezes que o fiz, nunca mais sozinho. Até que, cerca de 2 meses atrás, eu viajei sozinho pra Caeté, ás 23h.

Fazem uns bons anos do acidente. Talvez uns 7. A estrada não tem iluminação por uma boa parte. Conheço a estrada como a palma da mão, e com o mapa que o barranco marcou no meu corpo.

Quando eu me aproximei do local, tudo veio a tona de uma vez, de forma bem crua. Parece que o machucado da alma não fecha mesmo. De alguma forma, eu estava preparado; já tinha passado por isso. Eu não ia me deixar abalar por sandice, por mais que o palhaço (eu) já esteja maluco a um bom tempo.

Quando eu digo pra vocês que eu senti o tempo passar devagar, é porquê eu senti. Quando eu ouvi meu som no máximo ficar em silênio, é porquê eu ouvi. Quando eu senti o volante ficar gelado nas minhas mãos, é porquê ele estava.

Mas que quando eu fiz a fatídica curva, que eu vi uma silhueta humana, bem apagada, um braço apontando pro buraco, uma face sem rosto, por um instante, eu não consigo te dizer se vi.

Porquê eu não tive coragem de olhar uma segunda vez.

Em uma das visitas pós acidente, um conhecido disse que aquele terreno (onde eu caí) era meu, tinha meu nome e sangue. Rindo, piada, já que eu não morri, ríamos da minha sorte. E agora eu penso nisso, constantemente. O que é que ainda é meu, e o que é que eu deixei ali?

E esse é o fim da história de dois anos atrás. Se eu disse que eu ainda não penso no meu terreno eu estaria mentindo, e muito. De dia, eu sempre aceno ao buraco. Mas esse dia das bruxas, eu esqueci. Eu não consigo calcular, como, de que forma, eu pude esquecer.

Dessa vez, a viagem foi amarga. Não foi rápida. Eu não senti mais só o buraco. O stress pela estrada inteira. As músicas embaralhadas em uma cacofonia sem sentido, o stress do meu corpo ao máximo, os sons da estrada se misturando e alternando.

Meus devaneios foram sobre a fé, e o quão nossa mente consegue transformar em realidade nossos caprichos. Se eu acreditar muito forte em alguma coisa, aquilo vai se tornar realidade? O medo, quando descontrolado, tira os limites, tira o bom senso, faz de rascunhos um terror completo.

Corpos na estrada, bruxas nas árvores, sussuros no pé do ouvido. As curvas que pendem mais pra um lado, o freio que as vezes engasga, a aceleração que as vezes não vem. Uma lua que desaparece nos céus.  Digo com tranquilidade que essa foi a pior viagem que eu já fiz.

Mas a escolha que eu fiz, nesse pós, foi não dar voz a minha loucura. Eu não vi nada, não ouvi nada, não senti nada. São todos moinhos, meus dragões. Mas agora, eu me tatuei. Eu não viajo a noite por esta estrada mais. Eu volto aqui quando eu esquecer.

RIP sapo que se jogou embaixo da minha roda, peço desculpas, e que você me perdoe do céu dos Sapos.

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