segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O perdedor de memórias

 O quarto está escuro, mas ainda é dia. O céu está nublado e entra pouca luz pela porta aberta e da janela sem cortinas. Cai uma chuva fina, que reverbera pelo telhado. A calha tem uma pequena cachoeira constante. É um sítio, e com a chuva, poucos outros barulhos fazem força pra serem ouvidos, exceto pelo constante som de metal na porcelana.

Com o braço direito imobilizado, o esquerdo faz todo o trabalho, desengonçado, sem finesse. Estou sentado em um banco de madeira, de frente a um balcão com algumas ferramentas. Na minha mão esquerda, um alicate. Na minha frente, um pequeno jarro de porcelana, levemente pintado e com cores já desbotadas. 

Meus olhos perdem o foco por um momento, e o fantasma atrás de mim toma forma mais uma vez. O ambiente fica mais frio, a temperatura vai caindo rapidamente. Os sons da chuva vão ficando abafados e distantes. O fantasma se aproxima, coloca a mão no meu ombro, toca minha cabeça. Diz alguma coisa próximo ao meu ouvido e some novamente. 

Automaticamente mais um prego se materializa no meu peito, dessa vez bastante profundo. Com o alicate, eu aperto a cabeça e começo a fazer força para movimentá-lo. A cada movimento, a lembrança fica mais dolorida. Todas as vezes que nós fizemos algo juntos. Cada música que demos um significado. Cada piada interna. Cada troca de olhares. E tudo que estava ao redor enquanto tudo isso estava acontecendo, cada situação, cada tempo, cada hora. Quando eu sinto que a dor vai ficar insuportável, uma mão transparente aparece e aperta o prego, me ajudando a remover. 

O sangue que sai da ferida é pálido e azul, refletindo a fraqueza interior. Ele pulsa por alguns segundos ainda, sujando meu corpo, calça e chão. É inodoro. Com o prego removido, a jarra se abre, e eu jogo o prego lá dentro. A batida do metal na porcelana me informa que mais uma lembrança foi forçadamente removida de dentro do meu coração.

Em um descuido eu começo a vasculhar pelas lembranças que ainda me restam, os arquivos que não foram deletados; sou recompensado com mais dor. Minhas lágrimas são inaudíveis.

Vou mais uma vez perdendo o foco, e o fantasma aparece novamente. E ele sorri o mais lindo sorriso que eu jamais vou ver de novo. Esse prego foi o que mais demorou a sair.

O barulho do metal na porcelana começa a ficar agradável.


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