quinta-feira, 17 de março de 2022

Ritmo

O coração ressoa; 

    Um tambor dentro do peito, que ecoa pelos braços podres e as pernas doloridas. A emoção que vem é mista, embolada, disforme. 

    Eu deveria saber o que é, mas não traduz, o corpo não associa, desentende 

 transborda e grita e anseia e some e desce e acorrenta e fere e volta 

Como expulsar um impulso elétrico? Como parar uma reação química? 

    A fraqueza da carne, a simplicidade do físico, a água salgada que umedece os meus cílios 
    
    É desesperador, é fútil, preenche de tristeza e pavor

As horas se vão com as batidas surdas, e a cada uma o tempo desacelera, a insensatez toma conta e agrega ao desentender 
    
    O sono se torna um vagante desconhecido, à tempos ausente do pavimento das minhas fundações 

    Vidrado no teto, de olho na hora, alterando sonhos, falhando em existir 

Em frente, mas torto e manco, ansioso e despreparado 

quase, quase parando 

persiste

ainda

sexta-feira, 4 de março de 2022

Hollow

 Tem uma rachadura na minha alma. As vezes, quando ando, eu sinto as paredes se chocando, e elas trincam mais, soltam mais pedacinhos, ficam mais secas. As vezes, durante o dia, alguma coisa joga uma mão de cimento, água, revitaliza as estruturas. Mas o tempo passa, e a rachadura volta, e seus barulhos me assustam.

Ontem eu acordei com um barulho. Parece que meus olhos estavam abertos antes de eu perceber. Eu foquei pra sentir o que estava errado, e a rachadura estava vazando areia. Foi difícil pois parecia que a areia nunca ia acabar. Escorreu como areia movediça em um buraco no deserto, lixando as paredes, alargando a entrada. Eu não conseguia dormir, nem parar de pensar enquanto a areia escorria. 

O que eu estava perdendo? O que saía de mim, tão rápido, que eu só conseguia observar? Eu não conseguia compreender o que era aquela areia, eu só tinha a sensação, a sabedoria torta, da alma aberta, vazando. Eu não consegui voltar a dormir. Quando a luz entrou pela janela, eu levantei, e o barulho da rachadura foi oco. Não me surpreendeu, mas a percepção do vazio me incomodava bastante. 

O que foi, que eu perdi? O que minha alma sacrificou, para que eu pudesse ainda levantar?

Certos anseios da alma, certos confortos, foram perdidos. Deu espaço pras dores se acomodarem.

O desespero deu espaço a catarse. Os dias passaram, e o choque foi diminuindo.

O cimento que entra pelas rachaduras, é estranhamente amargo. Não trás alento, é um paliativo espesso, áspero, que tenta me convencer que eu não estou vazio. Ele fecha as rachaduras, preenche um espaço, mas com nada. É apenas para que de alguma forma eu pare de vazar, pare de dar atenção a tudo que eu deixei escapar de mim. Ele me tira o foco do que eu perdi, e coloca no conforto ilusório que é não estar mais rachado. 

A areia ainda escapa por algumas rachaduras, mas a cada dia que passa, o fluxo diminui. A cada sorriso forçado, a cada prego removido, as rachaduras se abrem menos. A areia parece acabar. Do que morreu e secou aqui dentro, só sobrará poeira. 

A dor ainda existe. Mas antes, onde existiam milhares de espinhos e razões, hoje tem o vazio do que passou. Então dói menos.

E vamos.